sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.


.Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Nada há a temer, porque nada temos a perder.
Tudo o que pode ser roubado de você não tem valor. Portanto, por que temer, por que susupeitar, por que duvidar?"

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

"O amor não deveria ser exigente; senão, ele perde as asas e não pode voar; torna-se enraizado na terra e fica muito mundano. Então, ele é sensualidade e traz grande infelicidade e sofrimento. O amor não deveria ser condicional, nada se deveria esperar dele. Ele deveria estar presente por estar presente, e não por alguma recompensa, e não por algum resultado. Se houver algum motivo nele, novamente seu amor não poderá se tornar o céu. Ele está confinado ao motivo; o motivo se torna sua definição, sua fronteira. Um amor não motivado não tem fronteiras: é pura alegria, exuberância, é a fragrância do coração."

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

"No momento em que você se ilumina, toda a existência se ilumina. Se você estiver na escuridão, toda a existência estará na escuridão. Tudo depende de você."
Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre no levamos
a sério.

"Cada um em seu caminho e com suas singularidades."

Fruto de enganos ou de amor,
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se amar também
segundo o meu desejo.

Terei meu par de asas
cujo vôo se levanta desses
que me dão a sombra onde eu cresço
- como, debaixo da árvore,
um caule
e sua flor

"Se achar que não valho nada, serei nada. Deixarei que outros falem, decidam, vivam por mim. Porém se acreditar que apesar dos naturais limites e do medo todo eu mereço uma dose de coisas positivas, vou lutar por isso.
Vou até permitir que os outros me amem."

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


"Ainda que a gente nem perceba, tudo é avanço e transformação, acúmulo de experiencia, dores do parto de nós mesmos, cada dia refeito.
Somos melhores do que imaginamos ser.
Que no espelho posto à nossa frente na hora de nascer a gente ao fim tenha projetado mais do que um vazio, um nada, uma frustração: um rosto pleno, talvez toda uma paisagem vista das varandas da nossa alma."

"Palavras gastam-se como pedras de rio, mudam de forma e significado, de lugar, algumas desaparacem, vão ser lama de leito das águas. Podem até reaparecer renovadas mais adiante.
Felicidade é uma delas.
Banalizou-se porque vivemos numa época de vulgarização de grandes emoções e desejos, tudo fast food, prêt-à-porter, pronto para o microondas, fácil e rápido... e tantas vezes anêmico."

"Há quem goste de se fechar numa caverna."

"Refletir é transgredir a ordem do superficial.
Mas se eu estiver agachado num canto tapando a cara não escutarei o rumor do vento nas árvores do mundo - que eu sempre quis tanto entender mesmo por um só dia. Nem saberei se o prato das inevitáveis perdas pesou mais do que o dos possíveis ganhos."

"Termino o livro e fecho o computador sabendo que por mais que os escritores escrevam, os músicos componham e cantem, os pintores e escultores joguem com formas, cores e luzes -, por mais que o contexto paralelo da arte expresse o profundo contraditório sentimento humano, embora dance à nossa frente e nos convoque até o último fio de lucidez, o essencial não tem nome nem forma:
é descoberta e assombro, glória ou danação de cada um."

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.

Amar

[...]
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Extravio

Era uma vez uma via
que fez-se em mil maravilhas
num dia lindo de vez...
Talvez, pra minha alegria
- coisa que nunca se viu! –
na via que vi havia
o céu que eu tanto queria
com fogo de cio na tez.

E eu vi que a via me via
vestida em mil amavios
visando a minha avidez...
E quando investi meus navios
a via ainda me riu
e delindo, linda, desfez-se.

Inapagável Apego

Apesar desta distância que nos tolhe
E da falta de teus braços, que me esfriam
Eu te afago tatuada na memória
E o fogo que respondes acaricia...
Teus olhos sagitais inda me atingem
E me fingem uma anti-última alegria...

Sustentação

Nestes dias de sol alto demais
a tristeza viceja no meu rosto.
Sou sintomas de luz esburacada
olhos sujos de cenas que não gosto.
Há lembranças dum sonho de herói
que forçaram ir rasgando aos poucos.
Assim mesmo disfarço que suporto
inventar de buscar a minha sorte
calo calos de mágoas que me mordem
respirando este tempo que me dói
pra fugir de ficar a fim da morte.

Chegar aonde festejas!

Por tanto que te desejo
Pareço quem te conhece
Quem sabe onde começas
E cresce onde festejas
Quer quer ser teu endereço
E estar onde quer que estejas...


Nos penso cheios de ardores
Te lembro, sinto que adejo
Te almejo de Maio a Maio
Eu ensaio que te alvejo...
Te faço feixes de amores
E te deixo mantos de beijos.


Pressinto-te, a té latejo
Onde florindo retardas...
Lá onde guardas meus beijos
Onde teus beijos me aguardam!

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A fome do primeiro grito

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

De Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)