sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.


.Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 1 de novembro de 2010


      Bem, como dizia o comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida toda é um doer.
      O ruim é quando fica dormente. E também não tem dor que não se acalme - e as mais das vezes se apaga. Aquilo que te mata hoje amanhã estará esquecido, e eu não sei se isso está certo ou está errado, porque acho que o certo era lembrar. Então o bom, o feliz se apagar com o ruim, me parece injusto, porque o bom sempre acontece menos e o mau dez vezes mais. O verdadeiro seria que desbotasse o mau e o bom ficasse nas suas cores vivas, chamando alegria.
      [...]
      Mas isso eu falo depois, numa hora emque doer menos ou não doer tanto.
     

Felizmente já faz tempo. Pensei que ia contar com raiva no reviver das coisas, mas errei. Doer se gasta. E raiva também, e até ódio.Aliás também se gasta a alegria, eu já não disse?
      [...], nada volta mais, nem sequer as ondas do mar voltam; a água é outra em cada onda, a água da maré alta se embebe na areia onde se filtra, e a outra onda que vem é água nova, caída das nuvens da chuva. E as folhas do ano passado amarelaram, se esfarinharam, viraram terra, e estas folhas de hoje também são novas, feitas de uma seiva nova, chupada do chão molhado por chuvas novas. E os passarinhos são outros também, filhos e netos daqueles que faziam ninho e cantavam no ano passado, e assim também os peixes e os ratos da dispensa, e os pintos... tudo. Sem falar nas moscas, grilos e mosquitos. Tudo.

A história da raposa

[...], numa serra da Espanha, que caiu presa numa armadilha de ferro, como não conseguia se libertar, roeu a junta do osso, rasgou a pele e a carne até apartar, e por fim saiu livre - aleijada mas livre, deixando o pé na armadilha; e no outro dia o caçador só encontrou aquela pata sangrenta, presa nos dentes de aço.
[...]- doía, mas tinha que sarar. E ia sarando aos bocadinhos, às vezes eu já passava um dia inteiro sem me lembrar de nada.



   - Então você está cansado da vida?
   A gente conversava em voz baixa, nós dois debruçados para a água, vendo se o peixe mordia. Mas, àquela minha pergunta - cansado da vida? - ele se endireitou, com o sol no rosto e os olhos faiscando:
   - Cansado da vida, não! Cansado desta vida!
   E me envolveu toda com o olhar e com o sorriso e era como se me pegasse no colo:
  - Menina, estou gostando tanto da vida, ultimamente, mas tanto que se soubesse de um lugar onde vendessem vida, eu ia trabalhar feito um louco só pra arranjar dinheiro e comprar mais vida!
   Tive vontade de lhe cair nos braços na frente de todo o mundo. Mas eu, contudo, era ao contrário dele: de tão feliz, de tão feliz que me sentia, tinha era vontade de morrer logo, no medo que a felicidade se acabasse.



E o trem partiu e eu fiquei dando adeus da janela, chorando feito uma boba, e ele rindo e me acenando. Era a primeira vez em que nos separávamos e então fiquei me lembrando de quantas vezes ele já me vira chorar, eu que antes tinha fama de ser a moça que não chorava. Mas dizia Maria Milagre que atrás de cada olho a gente tem um saco de lágrimas e durante a vida tem que chorar aquela conta - eu estava dando vazão à minha - e depois que o saco esvazia a gente nunca mais chora.